Cristianismo papinha Nestlé

“Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo”. (2 Coríntios 11.3)

Esse verso é freqüentemente citado para defender que o Cristianismo é simples. Mas o que as pessoas costumam dizer com “simples” não é o mesmo que “simplicidade” significa neste verso. “Simples” aqui não é o contrário de “complicado” ou “complexo”. A palavra traduzida neste verso como “simplicidade” é ἁπλότης – haplotēs – e não é sinônimo de “fácil de entender”, mas é o contrário de “corrompido”. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define “simples” da seguinte maneira:

simples 
adj. 2 g. 2 núm.
1. Que não é composto.
2. Que não é complicado.
3. Sem ornatos nem enfeites.
4. De fácil interpretação.
5. Puro; claro.
6. Singelo; inocente.
7. Mero; natural.
8. Ingénuo; crédulo.
9. Vulgar.
10. Exclusivo.
11. Fácil.
12. Modesto.
13. Sem luxo.
14. Individuado.
15. [Gramática] Diz-se dos tempos dos verbos que se conjugam sem auxiliar.
s. 2 g. 2 núm.
16. Pessoa humilde, ignorante.
s. m. pl.
17. [Popular] Cimbres.
Superlativo: simplicíssimo.

A Nova Versão Internacional deixa isso mais claro: “O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo”. (II Co 11.3) Podemos dizer que o Cristo é simples somente se com isso estivermos falando da pureza do Evangelho, mas não podemos dizer que seja simples se com isso estivermos dizendo que tudo seja muito fácil de entender.

A Bíblia deixa claro que há muitos pontos que não são fáceis de entender. Se alguém acredita que todos os pontos do Cristianismo seja fácil de compreender, é possível que ele esteja sistematicamente ignorando a maior parte do que revelou porque tem preguiça de pensar sobre tudo aquilo que não for “simples” e, portanto, seu Cristianismo é extremamente superficial; ou é possível também que seu “Cristianismo simples” seja na verdade um falso Evangelho, diluído ao máximo para caber na sua mentalidade “simples”.

Na Epístola aos Hebreus lemos a seguinte reclamação:

“Do qual muito temos que dizer, de difícil interpretação; porquanto vos fizestes negligentes para ouvir. Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das Palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento. Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino. Mas o mantimento sólido é para os maduros, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal”. (Hebreus 5.11-14)

Um bebê não tem condições de se alimentar do mesmo que um adulto. Enquanto um adulto pode apreciar um belo churrasco gaúcho com um bom vinho, o bebê recém-nascido tem que se contentar com o leite materno. Sem dúvidas, o leite materno é muito importante. Bebês precisam dele para se desenvolver. Mas, se uma pessoa, depois de crescer, continua se alimentando de papinha nestlé ou querendo se alimentar dos seios da mãe, ela tem sérios problemas. 

A reclamação de Hebreus é que seus leitores eram cristãos há tempo demais para que ainda continuassem a precisar de leite. Já tinha passado da hora de começarem a comer churrasco e tomar vinho. Se não queremos cometer o mesmo erro que eles, precisamos identificar o que era o “leite” e o que era o “mantimento sólido”. Ele identifica o leite no início do capítulo seguinte: “Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à maturidade, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, E da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno“. (Hb 6,1-2) Se passamos a maior parte do tempo procurando entender o que a Bíblia ensina sobre qualquer uma dessas coisas, ainda estamos tomando leite. E se estamos fazendo isso depois de anos no Evangelho, então estamos sob a crítica de Hebreus. 

Ele identificou também o que é o alimento sólido: “os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal“. A vida não é simples. A vida tem muitas situações e circunstâncias complexas. Precisamos ter discernimento para saber como os mandamentos de Deus se aplicam em cada uma destas situações. Quanto mais complexa for a situação, mais complexa é a aplicação. A maturidade não existe quando passamos a compreender a doutrina da salvação, o significado do batismo, o motivo de existir imposição de mãos ou de existir um Juízo Final.

A maturidade acontece quando temos a capacidade de aplicar os mandamentos de Deus nas mais variadas circunstâncias da vida em que precisam ser aplicados. Para sair do leite e ir para o alimento sólido é preciso fazer como o salmista: “Oh! quanto amo a tua Lei! É a minha meditação em todo o dia”. (Sl 119.97) Sem meditação, não há desenvolvimento, não há maturidade.

Os destinatários de Hebreus queriam o “Cristianismo simples”. “Muito temos que dizer, de difícil interpretação“. O “Cristianismo simples” não se importa com aquilo que é de difícil interpretação e por isso é um Cristianismo fraco, impotente, diluído e mundano. É incapaz de seriamente desafiar o mundo, é incapaz de exigir que o mundo obedeça a Deus porque nem mesmo tem consciência do que é a vontade de Deus. Não têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal e, portanto, não sabe qual é o mal que tem que ser denunciado nem o bem que tem que ser anunciado. Quando muito, explicam os rudimentos – a doutrina da salvação, o Juízo Final, os sacramentos. Mas não é capaz de lidar com as coisas mais complexas da vida porque se resume ao que é “simples”. Na maioria dos casos, nem mesmo chega a isso. É o Cristianismo da infantilidade e da meninice que não é capaz de lutar seriamente contra as maiores iniquidades do mundo porque briga de menino é só no berçário.

“A boca do justo fala a sabedoria; a sua língua fala do juízo. A Lei do seu Deus está em seu coração; os seus passos não resvalarão”. (Salmo 37.30-31)

Fonte: Resistir e Construir

Veja também: "Cristianismo Água-Com-Açúcar" por C. S. Lewis

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